Ficamos “Even In Arcadia” com Sleep Token

Even in Arcadia, Sleep Token

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Com “Even In Arcadia”, os Sleep Token entregam-se, uma vez mais, ao sublime caos das suas próprias contradições. Lançado a 9 de maio de 2025 com selo RCA, o quarto disco da banda britânica liderada pela enigmática figura Vessel surge como um dos álbuns mais aguardados do ano e talvez o mais polarizador da sua discografia. Ao longo de dez faixas, o coletivo continua a desbravar um terreno musical cada vez mais híbrido – uma amálgama de metal, trip-hop, pop eletrónico, soul noir e resquícios de djent, conduzida por uma lírica confessional que transforma dor em dramaturgia.

“Even In Arcadia” é um álbum profundamente marcado por tensões internas: entre o peso e a leveza, o silêncio e o grito, o íntimo e o espetáculo. Ao mesmo tempo que Vessel parece abrir-se como nunca – denunciando o cansaço, a pressão e a dissonância de viver sob um culto – a música, por vezes, refugia-se em estruturas seguras, com momentos em que o excesso de camadas e transições bruscas dilui o impacto emocional.

Even in Arcadia LP, Sleep Token
Even in Arcadia LP, Sleep Token

As críticas mais ferozes ao disco dos Sleep Token apontam para o que chamam de “djentrificação” do som, ou seja, uma diluição das raízes mais pesadas da banda em prol de uma acessibilidade que nem sempre traz profundidade. É certo que os Sleep Token já não são apenas uma banda de metal alternativo. São um fenómeno cultural, com uma estética messiânica, uma base de fãs devota e uma presença de palco que se aproxima do ritual.

Linha de Tempo: O enigmático caminho até Even in Arcadia

  • 18 de fevereiro de 2025: Sleep Token estreia-se no TikTok com uma publicação que remete para um site enigmático: Show Me How to Dance Forever. Este site, com estética floral e arquitectura clássica, escondia um puzzle que levava ao Shepherd’s Monument, em Shugborough Hall (Inglaterra), e pedia a decifração do célebre enigma do monumento. Quem o resolvia era acolhido com a imagem de um flamingo negro e uma mensagem por email intitulada “BEHOLD, A DIVIDE”, oferecendo duas opções: House Veridian e Feathered Host — cada uma com identidade visual distinta.
  • 26 de fevereiro: Um novo email direciona os seguidores para duas contas de Instagram — uma para cada “house”. Ambas publicam partituras idênticas que rapidamente se tornam virais, com fãs a interpretarem as peças online. Referências em latim nas partituras (“septuagesimus” e “secundus”) sugerem o dia 72 do ano (13 de março), coincidindo com uma lua de sangue.
  • 7 de março: As contas oficiais divulgam o teaser “Prepare for a new offering” com uma imagem do flamingo negro. Coordenadas levam os fãs até ao Griffith Observatory, em Los Angeles, onde QR codes escondidos revelam a palavra “EMERGENCE”, nome do primeiro single.
  • 10 de março: Perfis de várias salas de espetáculo nos EUA mudam as suas imagens para os logótipos das casas, surgem cartazes e reels com a frase “Have you waited long for me?”, antecipando nova tour.
  • 13 de março: É oficialmente anunciado o quarto álbum da banda — Even in Arcadia, com lançamento a 9 de maio — acompanhado do single “Emergence” e da tour norte-americana.
  • 29 de março: O meteorologista Chris Michaels dá pistas sobre o próximo lançamento. Com mensagens subtis e jogos visuais, os fãs decifram a palavra “CARAMEL” e a data de lançamento do segundo single.
  • 4 de abril: Lançamento de “Caramel”, que se torna o single mais bem-sucedido da banda até à data. A letra revela a vulnerabilidade de Vessel, falando da perda de anonimato e do peso da fama.
  • Durante o lançamento de “Caramel”: Um código binário escondido revela “DAMOCLES”, título do próximo single.
  • 16 e 17 de abril: Através do Spotify, os fãs recebem pistas visuais que levam à revelação da tracklist completa de Even in Arcadia.
  • 25 de abril: “Damocles” é lançado como o terceiro single, aprofundando os temas de exposição mediática e conflito interior de Vessel.
  • 9 de maio: Lançamento de Even in Arcadia

"Even in Arcadia" - Vessel, Sleep Token
“Even in Arcadia” – Vessel, Sleep Token

Abertura: Uma odisseia sonora

O disco abre com “Look To Windward”, uma peça de quase oito minutos que funciona como introdução cinematográfica e ensaio existencial. “Will you halt this eclipse in me?” sussurra Vessel num crescendo melódico que culmina num clímax de guitarras distorcidas e orquestrações arrebatadas. O título da faixa remete a Iain M. Banks – “Look To Windward” é uma obra marcante da ficção científica contemporânea que reflete sobre temas como trauma, perda e as consequências da guerra, através de uma lente existencialista. Esta escolha não é inocente: tal como o universo de Banks, também o mundo sonoro de Sleep Token em Even In Arcadia é marcado por tensões entre passado e presente, destruição e reconstrução.

Segue-se “Emergence”, onde o vocalista encarna uma persona mais próxima do hip-hop e do EDM, num exercício de desconstrução que, embora arriscado, resulta num dos momentos mais audaciosos do álbum.

“Even in Arcadia” – A memória como palco e ferida

A meio da viagem dos Sleep Token, “Past Self” e “Caramel” oferecem um mergulho na identidade fragmentada de Vessel. “And I don’t even know who I used to be”, confessa, deixando claro que este álbum é, acima de tudo, um diário de transformação. “Caramel”, com o seu refrão melódico – “Stick to mе like caramel” – e estrutura radio-friendly, é simultaneamente uma canção de amor e de lamento – e um comentário amargo à tensão entre anonimato e exposição que acompanha o culto crescente em torno da banda.

O tema-título, “Even In Arcadia”, marca o início da segunda metade do disco e talvez o seu ponto de inflexão emocional. A referência à Arcádia — símbolo clássico de um paraíso idealizado – funciona aqui como ironia amarga: mesmo nesse lugar utópico, há sombras que não se dissipam.

Entre mitos e feridas abertas

O penúltimo tema do album, “Gethsemane”, remete ao jardim bíblico onde Jesus enfrentou a sua última noite em agonia. A canção é um dos momentos mais tocantes do disco de Sleep Token, com uma honestidade brutal sobre amor não correspondido e memória traumática: “No one’s gonna save me from my memories / Nothing to lose, but I would’ve given anything”.

Segue-se “Infinite Baths”, o fecho perfeito para o álbum dos Sleep Token. Com mais de oito minutos, inicia-se num plano etéreo e quase litúrgico, até desaguar num breakdown que é dos mais pesados e catárticos da carreira da banda – uma despedida que tanto consome quanto eleva.

Lista Completa de Faixas: Sleep Token Even in Arcadia

  1. Look To Windward
  2. Emergence
  3. Past Self
  4. Dangerous
  5. Caramel
  6. Even In Arcadia
  7. Provider
  8. Damocles
  9. Gethsemane
  10. Infinite Baths

Sleep Token – A dança com o abismo e uma nova era

É precisamente esse estatuto que torna “Even In Arcadia” tão fascinante. Em vez de oferecer um disco coeso e fácil de digerir, a banda propõe uma viagem labiríntica e instável, onde cada faixa parece conter múltiplos caminhos possíveis. Há momentos de pura transcendência, como o final de “Dangerous” ou o build-up de “Provider”.

Se Even In Arcadia” é em muitos sentidos, a mais ousada e ambiciosa incursão artística dos Sleep Token até à data, não o é sem controvérsia. A tentativa de fundir géneros tão díspares como o metal, o R&B atmosférico, o trip-hop e o pop cinematográfico gerou reações polarizadas.

A Pitchfork, por exemplo, descreveu o álbum como “demasiado higienizado”, acusando a banda de trocar a crueza emocional do metal por um ecletismo estilístico calculado que, em certos momentos, se aproxima do pastiche. O Guardian foi mais brando, apontando que “a produção requintada esconde por vezes a urgência dos temas”, mas reconhecendo o “poder catártico de faixas como ‘Damocles’ e ‘Infinite Baths’”. Já a Kerrang! elogiou a “coragem criativa de Vessel ao explorar a vulnerabilidade como linguagem central” e destacou “Caramel” como “um dos momentos mais humanos e desconcertantes do ano”.

É precisamente essa tensão entre a forma e o conteúdo, entre acessibilidade sonora e densidade lírica, que dá a Even In Arcadia o seu traço distintivo. Faixas como “Caramel” ou “Damocles” não se contentam com o melodrama habitual: nelas, Vessel confronta o desgaste provocado pela exposição mediática e a lenta corrosão do eu interior.

Mais do que um álbum tradicional, este disco posiciona-se como um tratado emocional onde o conflito é não só temático, mas estrutural. A Arcádia de Sleep Token não é um paraíso encontrado – é um estado de transição. Uma promessa de harmonia que só pode ser cumprida depois de se atravessar o tumulto. Para os que esperam redenção fácil, este será um disco frustrante. Para os que sabem que há beleza na inquietação, é possível que Even In Arcadia seja um dos discos mais significativos do seu tempo.

E, no entanto, talvez essa seja a verdadeira proposta de “Even In Arcadia”: não oferecer certezas, mas entregar-se ao risco. Como Vessel canta em “Damocles”: “I know I should be touring / I know these chords are boring / But I can’t always be killing the game”.

Mais do que um disco, “Even In Arcadia” é um reflexo do momento em que os Sleep Token se encontram — entre a devoção e a exaustão, entre a fé e a dúvida. É um álbum que abraça o paradoxo de ser, simultaneamente, um espetáculo e um colapso interior. E é nessa fricção que reside a sua força: a capacidade de, mesmo sem sempre convencer, nunca deixar de provocar.

Para quem esperava respostas, o novo álbum talvez não as traga. Mas oferece algo mais raro — um retrato brutalmente honesto do que é estar vivo, confuso e exposto num mundo que exige tudo. Mesmo em Arcádia.

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Pedro Ribeiro

Pedro Ribeiro

Pedro Ribeiro é o fundador do musica.com.pt. Como músico e produtor conta com mais de 25 anos de experiência no mundo da música, tendo participado em projetos como Peeeedro, Moullinex, MAU, entre outros, e tocando em venues como Lux, Maus Hábitos, Plano B, Culturgest, Glasgow School of Arts, entre muitas outras salas e locais em Portugal e no estrangeiro. Compôs música para teatro (Jorge Fraga, Graeme Pulleyn, Teatro Viriato), dança contemporânea (Romulus Neagu, Peter Michael Dietz, Patrick Murys, Teatro Viriato), TV (RTP2) e várias rádios.