“No Fundo”: cravo mergulha na melancolia mais visceral do projeto

A 10 de outubro, cravo lançou “No Fundo”, talvez o momento mais despido e doloroso deste projeto lisboeta que tem vindo a ganhar forma nos últimos meses. Não há rede de segurança aqui. O que ouvimos é aquela tristeza e melancolia que pesa nos ossos, a que não se disfarça com metáforas bonitas ou produção excessiva. É música feita nas entranhas, como quem finalmente decide olhar para o que estava guardado debaixo de tudo. Fica o vídeo de “No Fundo” de cravo em baixo para veres.

“No Fundo”: Uma canção que respira pelo silêncio

Musicalmente, “No Fundo” constrói-se sobre uma base minimalista que remete diretamente para The XX, aquele espaço negativo entre os instrumentos que funciona quase como personagem. Há também a rítmica subtil que faz lembrar Metronomy, mas sem a ironia. Aqui a leveza é outra coisa: é fragilidade assumida, é o cravo que “quase abana ao vento“, como descreve o próprio comunicado, numa dança hipnótica que prende precisamente por não forçar nada.

A produção coloca a voz à frente, nua, sem camadas a protegê-la. O instrumental move-se como quem caminha devagar por uma cidade de madrugada, quando já não há barulho de fora e só ficamos com o eco interior. Quatro minutos e dez segundos que não tentam convencer, simplesmente acontecem, e isso basta.

cravo, capa do single "No Fundo"
cravo, capa do single “No Fundo”

Imagens que dizem tanto quanto o som

A componente visual sempre foi central no universo cravo, e “No Fundo” não foge à estética minimalista que foi registada na canção. A capa e respetiva animação mostram uma figura masculina (sem expressão, tipo aqueles panfletos dos aviões com pessoas a saltar pela saída de emergência) a soltar fumo de um cigarro, rodeada por garrafas vazias espalhadas pelo chão. Apesar de a personagem não ter expressão, conseguimos adivinhar o que lhe vai na mente. Não há drama exagerado na composição, é contemplação pura, aquele estado de entorpecimento, de passar horas a “olhar para a parede” que todos já conhecemos mas raramente admitimos.

A ilustração e animação, tal como toda a dimensão sonora, são obra do próprio cravo. Esta autonomia criativa total permite uma coerência estética rara: cada elemento visual respira o mesmo ar pesado que a música transporta. Não são camadas separadas, mas diferentes faces da mesma inquietação.

Do T0 lisboeta para o mundo digital

Desenvolvido num T0 no centro de Lisboa, cravo tem essa qualidade particular dos projetos gestados em espaços pequenos: concentração absoluta, intimidade forçada com as ideias, impossibilidade de distrações. Desses metros quadrados têm saído temas que flutuam entre referências ao tradicional português, indie-pop, rock psicadélico e o downtempo atmosférico dos AIR.

Antes de “No Fundo”, cravo já tinha lançado “Bem-vindos”, “À Margem”, “Salta Desse Barco”, “Castigo” e “Chuva”. Cada um destes temas funciona como peça individual, mas juntos começam a desenhar um mapa emocional reconhecível. “No Fundo” aprofunda esse território, vai mais abaixo, cava onde ainda havia terra por revirar. Fica o video de “Castigo” em baixo.

cravo: Um projeto que recusa a exposição

cravo existe deliberadamente fora dos holofotes pessoais. Criado por Simão Reis, nome ligado a projetos como Rei Marte e Too Many Suns, o projeto opta por manter o foco absoluto na obra. Nada de rostos, nada de entrevistas a dissecar intenções, nada de Instagram a mostrar o processo. Só a música, a imagem, e depois o silêncio até à próxima flor.

Esta abordagem anónima nasce da “recusa da exposição pessoal e da celebração da liberdade artística“, permitindo que cada lançamento exista por si mesmo, sem o peso da persona. Cada cravo funciona como organismo autónomo: uma canção, uma animação, uma ilustração. Uma por mês, sem compromissos, sem géneros fixos ou narrativas lineares.

cravo, capa do single "Salta Desse Barco"
cravo, capa do single “Salta Desse Barco”

Ritmo mensal e preparação para o palco

Com este lançamento, cravo compromete-se a um ritmo mensal de publicação. Não é pouco: compor, escrever, editar, ilustrar e animar tudo sozinho exige uma disciplina que poucos projetos conseguem manter. Mas há mais: paralelamente aos singles, surgem agora os vídeos “ao vivo no t0”, que procuram traduzir as canções para o formato performativo.

Esta viragem para o registo ao vivo sugere que cravo se prepara para sair do digital e ocupar espaços físicos. Será interessante perceber como este projeto, tão assente na contemplação solitária e na experiência íntima do ecrã, se vai comportar num contexto de concerto, e em que tipo de salas. A vulnerabilidade que funciona tão bem em headphones conseguirá o mesmo efeito num palco? Acreditamos bastante que sim.

Erro e incoerência como manifesto

Na sua apresentação, cravo define-se como “ode ao erro e à incoerência“, recusando ser “flor de mercado” e assumindo-se como “sintoma do solo, da chuva, do sol e do ar“. Há aqui uma reivindicação clara: crescer torto, sem fórmulas, respondendo apenas às condições que o cercam. É um luxo raro, onde a pressão para encaixar em gavetas promocionais e métricas de algoritmo sufoca muita da experimentação genuína.

“No Fundo” corporiza perfeitamente esta filosofia. Não tenta agradar, não procura viralidade, não se molda a playlists algorítmicas. Existe porque precisa de existir, ponto final.

Nos próximos meses, à medida que novos cravos forem surgindo mensalmente, ficará mais claro que território este projeto pretende cartografar. Por agora, “No Fundo” deixa-nos com uma certeza: há ali alguém disposto a ir aos sítios incómodos, aos cantos que preferimos ignorar. E leva-nos consigo, mesmo que não tenhamos pedido.

“No fundo” de cravo já se encontra disponível em todas as plataformas digitais do costume, não percas!

Instagram: @cravo.cravo.cravo | Bandcamp: @cravocravocravo

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Pedro Ribeiro
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Pedro Ribeiro

Pedro Ribeiro é o fundador do musica.com.pt. Como músico e produtor conta com mais de 25 anos de experiência no mundo da música, tendo participado em projetos como Peeeedro, Moullinex, MAU, entre outros, e tocando em venues como Lux, Maus Hábitos, Plano B, Culturgest, Glasgow School of Arts, entre muitas outras salas e locais em Portugal e no estrangeiro. Compôs música para teatro (Jorge Fraga, Graeme Pulleyn, Teatro Viriato), dança contemporânea (Romulus Neagu, Peter Michael Dietz, Patrick Murys, Teatro Viriato), TV (RTP2) e várias rádios.