O novo disco de André Carvalho chega hoje a 7 de novembro e merece toda a atenção. “Of Fragility and Impermanence” aterra nas plataformas digitais e em formato físico (CD e vinil) através da Robalo Music, trazendo doze faixas instrumentais que funcionam como meditações sobre temas incómodos: envelhecer, ganhar, perder, criar filhos sabendo que um dia vão sofrer e estar longe de casa, e/ou a consciência permanente de que nada fica.
O compositor e contrabaixista português regressa aos discos conceptuais depois de “Lost in Translation” e “The Garden of Earthly Delights“, mas desta vez o ponto de partida é brutalmente pessoal. André Carvalho transforma todos estes ingredientes em música instrumental onde jazz, composição contemporânea e electrónica respiram no mesmo espaço, com uma abordagem extremamente sincera e madura que soa a banda sonora de filme.

Como se constrói um disco sobre coisas que não se dizem
“Of Fragility and Impermanence” agarra-nos. Mesmo que queiramos fazer um exercicio de escuta passiva, acabamos por ser imersos nesta viagem que nos pede toda a disponibilidade possível. Não há refrões a repetir ad infinitum, não há estruturas reconfortantes, nem tão pouco é esse o objectivo.
Neste álbum é difícil de dizer onde acaba a composição e começa a improvisação, e talvez sejam esses momentos de desconforto, ou conforto, tensão ou resolução, os contrastes que nos transmitem imagens tão vívidas, território este que André Carvalho conhece bem e explora com inteligência e mestria.
O disco abre com “A Galope”, tema urgente que nos atira para dentro do trabalho sem preâmbulos nem sugar coating. Os instrumentos desdobram-se em arpejos, counterpoints (não pude deixar de ouvir ali um bocadinho de Steve Reich durante instantes), dissonâncias, delays e reverse delays, para nos entregarem um pequeno momento de paz e consonância quase no final onde depois tudo se dissolve.
Logo a seguir vem “Dente de Leite” (primeiro em versão intro, depois completa), onde passamos por todo o processo (figurativo, obviamente) do aparecimento e queda da primeira dentição. Conseguimos sentir os primeiros dentes a brotarem, temos um breve momento para respirar e onde tudo acalma, para depois começarmos o processo gradual de queda e “destruição” dissonante das estruturas. Os instrumentos, efeitos e composição são exímios a pintar este quadro.
“Dores de Crescimento“, quarto tema do álbum e segundo single antecipado, continua a ser um dos momentos mais fortes do álbum. O saxofone de José Soares e o piano de Samuel Gapp criam momentos bastante bonitos que a electrónica de João Hasselberg amplifica sem exageros. Crescer dói, sim, mas André Carvalho não dramatiza, em vez disso, o tema parece-nos feito com alguma nostalgia e melancolia doce de quem olha para trás uns anos mais tarde.
Aliás, o vídeo/teaser lançado para este tema mostra-nos isso mesmo, um André Carvalho enquanto filho através de registos da sua infância, e enquanto pai, sentado no quarto da sua filha a relembrar e evocar o passado já distante.
Estes fragmentos do passado levam-nos para o tema “Echoes”, onde as memórias, instrumentação e os sentimentos parecem deslumbrar e tomar conta, para depois passarem para segundo plano, deixando espaço para recortes de vozes, algumas em português, outras em inglês, ou com o pitch down, como se fosse um diálogo em familia, projectados à distância dos tempos.
Os instrumentos vão crescendo à medida que o tema se desenrola, e vão introduzindo alguma dissonância sem se tornarem avassaladores, quem sabe aquele nevoeiro que nos impede de lembrar todos aqueles momentos e pormenores como se fosse há 5 minutos atrás.
“Mèrancolie” é um tema mais etéreo, que nos traz uma atmosfera densa mas respirável, onde o saxofone e delays se vão impondo gentilmente e onde possívelmente se trabalha a melancolia como estado natural, não como patologia clínica.
“Infância” revisita memórias sem cair na nostalgia açucarada, onde temos momentos de correria pelo parque infantil, efeitos que nos remetem a pequenos milissegundos de videojogo, mas também, momentos para recuperar o folêgo de tanta diversão. Este tema tem momentos melódicos e harmónicos que contrastam com pequenos momentos de dissonância, território que André Carvalho gosta de explorar para introduzir diversos momentos de tensão e quebra ao longo das suas composições.
Chega-nos “The Journey of Kanji Watanabe”, referência ao protagonista do filme “Viver”/”Ikiru” de Akira Kurosawa, onde passamos por vários momentos. No início, algum vazio onde o piano e violoncelo predominam, para passarmos por um momento mais agridoce à procura de significado onde o saxofone e o baixo se começam a destacar. No final, chegamos à fase de redenção e propósito, onde o nosso personagem finalmente encontra paz e resolução.
Uma das peças mais urgentes deste álbum chega-nos através de “No man ever steps in the same river twice, for it’s not the same river and he’s not the same man“. Título longo mas com uma ideia simples: nada se repete e tudo se transforma. André Carvalho materializa a filosofia de Heráclito (e talvez Lavoisier) numa composição que se transforma constantemente, onde melodias regressam mas nunca soam iguais, e seguem em crescendo até ao final. A produção propositadamente serve esta ideia, onde os efeitos adicionam texturas imprevistas que remetem à natureza implicita do titulo.
“The Restlessness of the White”, como o nome indica, é um tema inquieto, e tal como a cor branca, minimal e subtil. Começamos em território do silêncio, para gradualmente vermos a composição tomar forma, mas sempre de forma discreta. Os diferentes instrumentos, samples e efeitos vão entrando e saindo de cena vez à vez, criando estes momentos de inquietação que se dissipam nas nuvens.
“Study for a Bullfight #4”, tal como o quadro de Picasso, leva-nos a um tema onde a rígidez das formas se dilui, para nos levar a uma composição mais fluida e expressiva, sem estar presa a grandes estruturas ou cadências. É outro dos temas etéreos e minimais do álbum, onde se sente alguma tristeza, inquietação ou desânimo pela expressividade da instrumentação.
Para finalizar o álbum, “Trica de Irmãos” leva-nos de volta a casa e traz-nos algum conforto e boas memórias através de uma imagem forte – um bom arrufo entre irmãos, uma pequena zanga que não tem nada de mais, e até é saudavel, ajudando a resolver as tensões anteriores, a amadurecer, e a fortalecer os laços a longo prazo.
Cinco músicos e um estúdio em Serpa
O álbum “Of Fragility and Impermanence” nasceu no Centro Musibéria em Serpa, durante uma residência artística apoiada pela Antena 2 e pela Fundação GDA. Assim, José Soares (saxofone), Samuel Gapp (piano), João Hasselberg (electrónica) e Raquel Reis (violoncelo) juntaram-se a André Carvalho no contrabaixo e nas composições. Os 5 músicos fecharam-se em estúdio, com tempo para explorar ideias e com todo o espaço para improvisar e criar sem limites até chegarem ao resultado que podemos ouvir hoje.
A escolha dos timbres revela um critério apurado pois nada aqui soa convencional ou seguro. André Carvalho e restantes elementos perseguem sons menos óbvios, texturas ásperas, silêncios que pesam tanto quanto notas tocadas. A produção final abraça rugosidades em vez de as esconder, uma opção corajosa num mercado obcecado com perfeição e rigídez duma timeline digital.
André Carvalho: dos conservatórios ao cinema
André Carvalho tem um currículo extenso que atravessa continentes e géneros. Estudou na Manhattan School of Music e na University of Music and Performing Arts of Vienna depois de abandonar a carreira em informática – o André já programava aos 7 anos. Uns anos mais tarde, o Fulbright Program leva-o para os Estados Unidos em 2014, onde tocou no Blue Note de Nova Iorque e colaborou com nomes como Chris Cheek e Will Vinson.

Tal como um bom filho que regressa sempre a casa, o André Carvalho voltou para Portugal, mas sempre continuando a trabalhar internacionalmente e a desenvolver a sua arte. Entre vários prémios e performances, destacam-se as atuações na ópera Prelúdio de Gilberto Gil no Barbican Centre (Londres) e no Finlândia Hall em Helsínquia. Também passou por festivais e concertos em Paris, Cairo, Ljubljana, entre outras capitais e cidades. Ganhou prémios, o Carlos Paredes Award (2012), o Best Group na competição de jazz de Bucareste (2011), e várias bolsas da Fundação GDA.
Como referido anteriormente, a sua discografia inclui as obras (bastante recomendadas) a saber: “The Garden of Earthly Delights” (2019, inspirado em Bosch), e “Lost in Translation” (que tem dois volumes, lançados em 2021 e 2023).
Mas acaba por ser no cinema que André Carvalho encontra um território particularmente fértil e inspirador. A banda sonora para Atom & Void (realização de Gonçalo Almeida) valeu-lhe o galardão de Melhor Música no Short Shorts Film Festival (Japão) e a nomeação aos Prémios Sophia 2025. Em 2024 ganhou o prémio de Melhor Música Original no Planos Film Festival por Canto, de Guilherme Daniel e foi finalista em Oticons 2023 e na Berlin International Film Scoring Competition.
Concertos e formatos
Quatro datas já estão confirmadas para apresentação de “Of Fragility and Impermanence” de André Carvalho, a saber e não perder:
- 8 Novembro 2025 — Guimarães Jazz
- 21 Dezembro 2025 — CCB, Lisboa (Festa do Jazz)
- 28 Fevereiro 2026 — BOTA Anjos, Lisboa
- 18 Junho 2026 — Teatro Municipal de Bragança

Ao vivo espera-se que os temas ganhem vida diferente com improvisação, diálogo entre músicos, imprevisibilidade e improvisação que só acontece no momento. Estes concertos serão sem dúvida momentos únicos a não perder. O disco “Of Fragility and Impermanence” de André Carvalho já está disponível em formato digital e físico, sendo que a edição em vinil tem cada vez mais procura e é especialmente relevante num trabalho onde timbres e texturas carregam tanto significado.
Disco difícil, mas recompensador
“Of Fragility and Impermanence” não facilita. Pede escuta concentrada, e onde se nos distraimos, temos eventualmente de “puxar para trás” para recuperar momentos da história que perdemos. É preciso disponibilidade para deixar a música respirar, paciência para descobrir camadas que não se revelam logo, mas, quem investe tempo sai recompensado pois é um trabalho exímio, com muita maturidade e conhecimento do chão que se pisa.
André Carvalho podia ter feito um disco mais acessível, mais imediato ou mais comercial. Felizmente para nós, escolheu o oposto: criou um trabalho honesto sobre temas difíceis, usando uma linguagem musical própria, complexa, feita de contrastes e o resultado está à “vista”. Um dos discos portugueses mais interessantes de 2025 e uma obra que irá continuar a revelar-se em audições futuras.
Num ano onde a música portuguesa viu bastantes lançamentos com qualidade, “Of Fragility and Impermanence” destaca-se precisamente por ser diferente e único. É um disco pessoal e genuíno, cuja emoção é transmitida sem recorrer a clichés e onde o silêncio também tem lugar presente. André Carvalho não precisa de nos dizer literalmente o que está a acontecer porque o sentimos na pele. É um disco para ficar e que oferece uma experiência musical notável, extremamente madura e profunda. Recomendamos vivamente.
Website: andrecarvalhobass.com | Instagram: @andrecarvalho.bass | Facebook: @carvalhobass
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