Ayom: A Música que Habita o Tambor e Desperta Lisboa

Ayom. Crédito Fotografia: Gina Estrada

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No dia 13 de setembro, o Largo do Intendente vai vibrar com Ayom, seis músicos errantes que transformaram Lisboa no epicentro da sua revolução sonora e que trazem ao Festival Todos não apenas um concerto, mas um ritual de encontro que promete deixar marcas na alma de quem se atrever a escutar, transcendendo géneros, fronteiras e definições convencionais.

E quando dizemos “escutar”, não falamos do acto passivo de receber sons. Falamos da entrega total, da comunhão que se estabelece quando a música deixa de ser entretenimento para se tornar experiência ancestral. Porque Ayom não é uma banda que toca músicas, é um organismo que canaliza a energia primordial do tambor, esse instrumento que, segundo a mitologia afro-brasileira do Candomblé, foi o primeiro professor da humanidade na arte de cantar e tocar.

Ayom: Quando Seis Mundos se Encontram em Lisboa

A história de Ayom começa onde muitas histórias contemporâneas começam: na diáspora, no desenraizamento, na busca por um lar que não existe no mapa mas que se constrói no som. Jabu (brasileira) e Alberto (italiano), ambos a viver em Espanha; Timoteo (de ascendência grega e italiana), Francesco (italiano), Ricardo e Walter (ambos angolanos), todos residentes em Lisboa. Seis nacionalidades, múltiplas heranças culturais, uma paixão comum: a música da diáspora africana que encontrou em Lisboa não apenas um refúgio, mas um laboratório de fusão.

Lisboa, essa cidade que sempre foi porto de partida e chegada, torna-se para Ayom o território neutro onde as memórias musicais do Brasil, Angola e Cabo Verde se entrelaçam sem hierarquias, sem colonialismo cultural, sem a necessidade de explicar origens ou justificar influências. É aqui que nasce a liberdade criativa que define o grupo: a possibilidade de ser semba e frevo ao mesmo tempo, de cantar em português, espanhol e italiano na mesma canção, de incorporar a eletrónica sem trair a organicidade dos instrumentos tradicionais.

Sa.Li.Va.: Três Palavras que Resumem uma Filosofia

O álbum mais recente de Ayom, “Sa.Li.Va”, lançado em 2024, não é apenas um acrónimo, é um manifesto. “SA-grado”, “LI-berdade” e “VA-lentia” não são conceitos abstratos na música de Ayom; são forças vivas que pulsam em cada compasso, em cada silêncio, em cada respiração entre versos.

Ayom, capa do álbum Saliva. Crédito: Ayom
Ayom, capa do álbum Saliva. Crédito: Ayom

A sacralidade manifesta-se na reverência com que tratam as tradições musicais que habitam os seus corpos. Não é apropriação cultural, é honra ancestral. Cada ritmo incorporado (semba, funaná, frevo, maracatu, coladeira, congado, kizomba, xote, maloya, congo de ouro, e muitos mais) é tratado como um ente sagrado que merece respeito, compreensão e reinterpretação cuidadosa.

A liberdade é a recusa em encaixar-se em categorias. Ayom move-se “com liberdade entre sonoridades e afetos“, como se a música fosse um território sem fronteiras onde todas as geografias emotivas são possíveis. Esta liberdade é também política: o direito de ser híbrido, de não escolher uma identidade única, de celebrar a multiplicidade como valor fundamental.

A valentia é talvez o elemento mais radical: a coragem de criar uma linguagem musical própria numa época em que a indústria musical privilegia o reconhecível, o classificável, o vendável. A valentia de Ayom está em produzir “uma música errante, intuitiva, difícil de descrever e impossível de traduzir sem a experiência ao vivo“.

A Revolução Acontece ao Vivo

Num mundo saturado de algoritmos, playlists personalizadas e experiências musicais mediadas por ecrãs, Ayom representa uma resistência radical: a defesa da experiência ao vivo como território insubstituível.

Para a banda, “a relação com o público e com a comunidade dá-se ao vivo, na cumplicidade que se constrói no encontro e na energia partilhada em cada concerto“.

Esta filosofia torna-se ainda mais relevante no contexto do Festival Todos, que há mais de 15 anos utiliza a cultura como ferramenta de encontro entre mundos distintos. O concerto de 13 de setembro, às 17h30, com entrada livre, será um laboratório social onde diferentes culturas se reconhecem através da linguagem universal do ritmo.

O Reconhecimento Internacional e a Humildade Local

Os números falam por si: vencedores dos prémios Melhor Grupo e Melhor Disco da Songlines, Melhor Álbum World Music da German Critics Award, elogios do The Guardian (★★★★), Financial Times (★★★★), Le Monde, Songlines (★★★★), NPR. A crítica internacional reconhece em Ayom algo que transcende as expectativas habituais da “world music”, essa categoria muitas vezes condescendente que serve para arquivar tudo o que não é anglo-saxónico.

“Uma celebração feroz e devocional, do Brasil a Cabo Verde… entre tantas fusões globais disponíveis, Ayom oferece algo distinto e inesperado”, escreveu o The Guardian.

E é precisamente nesta distinção que reside o génio da banda: recusar o exotismo fácil, o pitoresco vendável, a fusão superficial que serve apenas para temperar o mainstream com algumas especiarias étnicas.

A produção de Sa.Li.Va. por Kastrup (vencedor do Grammy Latino pelo trabalho com Elza Soares) confirma que Ayom se move nos círculos mais exigentes da música contemporânea, mas a sua programação no Festival Todos, no Largo do Intendente, revela uma banda que nunca esqueceu as suas raízes comunitárias.

Entre o Ancestral e o Futuro: Uma Estética da Coexistência

Ayom representa a coexistência de opostos: tradição e inovação, masculino e feminino, poesia e energia, ancestralidade e futuro.” Esta frase, retirada da apresentação oficial da banda, poderia soar como retórica de marketing se não fosse sustentada por uma prática musical coerente.

A coexistência de opostos não é, para Ayom, um exercício intelectua, é uma necessidade existencial. Como músicos da diáspora, experimentam diariamente a tensão entre preservar memórias culturais e adaptar-se a novos contextos. Como artistas contemporâneos, navegam entre a responsabilidade de honrar tradições centenárias e a liberdade de criar linguagens inéditas.

Ayom. Crédito Fotografia: Fabiana Nunes
Ayom. Crédito Fotografia: Fabiana Nunes

Esta tensão produtiva reflete-se na instrumentação (orgânica e eletrónica), na linguagem (português, espanhol, italiano), na geografia emocional das canções (que viajam entre Brasil, Angola, Cabo Verde, Espanha, Portugal). O resultado não é confusão, é complexidade. Não é ecletismo vazio, é síntese viva.

O Futuro Pós-Festival Todos

Após a apresentação no Festival Todos, Ayom segue para uma tour no Brasil e Japão, levando consigo a experiência lisboeta para outros continentes. Esta internacionalização não representa uma fuga de Lisboa, antes a expansão da Lisboa musical que a banda ajudou a criar.

Porque Lisboa, para Ayom, não é apenas uma cidade onde vivem quatro dos seis membros. É o laboratório onde descobriram que a música da diáspora africana pode encontrar novos sentidos sem perder a alma. É o lugar onde aprenderam que a identidade não é origem, mas construção; não é passado, mas presente e futuro, partilhado.

Ayom. Crédito Fotografia: Ananda Geissberger
Ayom. Crédito Fotografia: Ananda Geissberger

O concerto de 13 de setembro no Largo do Intendente será, inevitavelmente, um momento de celebração e despedida. Celebração de uma banda que conseguiu transformar a diversidade em linguagem comum. Despedida temporária de uma formação que leva Lisboa no coração, mas tem o mundo como palco.

Para quem estiver presente, a promessa é simples: uma experiência que não se traduz em palavras, não se reproduz em gravações, não se substitui por streams. Uma experiência que só existe no instante partilhado, na energia coletiva, na cumplicidade construída entre palco e audiência.

Ayom chega ao Festival Todos como quem traz um segredo: a música não é produto, é encontro. E no Largo do Intendente, às 17h30 de 13 de setembro, esse segredo será partilhado com quem quiser escutar. Porque há músicas que se ouvem. E há músicas que se vivem. Ayom pertence à segunda categoria. Não te esqueças de seguir os Ayom no Instagram @ayommusic e Facebook @ayomband.

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Pedro Ribeiro

Pedro Ribeiro

Pedro Ribeiro é o fundador do musica.com.pt. Como músico e produtor conta com mais de 25 anos de experiência no mundo da música, tendo participado em projetos como Peeeedro, Moullinex, MAU, entre outros, e tocando em venues como Lux, Maus Hábitos, Plano B, Culturgest, Glasgow School of Arts, entre muitas outras salas e locais em Portugal e no estrangeiro. Compôs música para teatro (Jorge Fraga, Graeme Pulleyn, Teatro Viriato), dança contemporânea (Romulus Neagu, Peter Michael Dietz, Patrick Murys, Teatro Viriato), TV (RTP2) e várias rádios.