Fontes Sonoras trazem Rie Nakajima e Pierre Berthet em Outubro

A terceira edição das residências artísticas Fontes Sonoras traz à região de Leiria dois nomes incontornáveis da experimentação sonora contemporânea. Entre 20 e 26 de outubro, Rie Nakajima e Pierre Berthet instalam-se na Aldeia das Fontes para uma semana de investigação criativa que promete redefinir a forma como percecionamos o som enquanto matéria viva.

O projeto Fontes Sonoras, que decorre numa das aldeias mais isoladas do concelho de Leiria, baseia-se numa premissa simples mas radical: transformar o ambiente rural num laboratório de escuta. Não se trata apenas de fazer música ou produzir instalações. A proposta do Fontes Sonoras passa por criar um diálogo direto com o território, aproveitando as suas características acústicas naturais e a quietude característica destes lugares esquecidos pela azáfama urbana.

Nakajima e Berthet vão dedicar os dias à observação, à recolha de materiais e à construção de dispositivos que respondem ao espaço. O resultado não é previsível nem fechado. Cada objeto utilizado, desde elementos orgânicos a pequenos motores, passando por estruturas metálicas, ganham vida própria quando ativados, gerando camadas sonoras que se sobrepõem e alteram conforme as condições do momento. Podes ver o teaser do Fontes Sonoras em baixo.

Rie Nakajima desafia convenções

Ambos os artistas partilham uma visão pouco convencional do que significa criar som. Recusam a ideia de controlo total sobre a obra e preferem deixar espaço ao acaso, ao erro, à interferência do ambiente. É nessa abertura que reside a força do trabalho conjunto: o que acontece é sempre único, irrepetível, visceralmente ligado ao aqui e agora.

Rie Nakajima, radicada em Londres depois de deixar o Japão, constrói universos a partir do trivial. Usa pilhas, ventoinhas, caixas de cartão, brinquedos esquecidos. Estes objetos ganham autonomia quando postos a vibrar, a rodar, a bater uns contra os outros. O som que produzem nunca é linear. Há sempre algo de frágil, quase vulnerável, nas suas composições. Nakajima não esconde a precariedade dos materiais. Pelo contrário, faz dela o centro da experiência.

Rie Nakajima e Pierre Berthet, concerto. Crédito Fotografia: Salim Santa Lucia
Rie Nakajima e Pierre Berthet, concerto. Crédito Fotografia: Salim Santa Lucia

O trabalho da artista japonesa já foi apresentado em espaços tão distintos como a Galeria IKON, em Birmingham, ou o Cafe OTO, clube londrino de referência para a improvisação livre. Colaborou com figuras como David Toop, veterano da música experimental britânica, e Akira Sakata, saxofonista japonês de energia inesgotável. Cada parceria resulta em algo diferente, mas sempre fiel a uma ideia de som como presença física.

Pierre Berthet e a vibração como linguagem

Pierre Berthet vem de Liège, cidade belga com tradição industrial e uma cena cultural subterrânea vibrante. Desde os anos 90 que se dedica a criar instalações sonoras pensadas para lugares específicos. Não leva obras prontas para os espaços. Constrói-as lá, respondendo à arquitetura, à acústica, à luz, ao tipo de público que vai aparecer.

Nos últimos anos, tem trabalhado com plantas secas motorizadas. Sim, plantas. Folhas, ramos, estruturas vegetais que, quando postas a vibrar através de pequenos dispositivos mecânicos, produzem sons delicados e complexos. Berthet interessa-se pela ressonância dos materiais, pela forma como diferentes superfícies amplificam ou abafam frequências. Os seus concertos – se é que lhes podemos chamar assim – são exercícios de paciência e atenção.

Rie Nakajima e Pierre Berthet.
Rie Nakajima e Pierre Berthet.

A abordagem de Berthet não procura impressionar. Não há grandes gestos nem volumes ensurdecedores. O que há é subtileza, detalhe, convite a uma escuta diferente. E é precisamente essa contenção que torna o trabalho tão poderoso. Obriga-nos a abrandar, a concentrar, a reparar em camadas de som que normalmente ignoramos.

O contexto das Fontes Sonoras

A iniciativa “Fontes Sonoras” nasce da Omnichord, estrutura cultural que tem vindo a desenvolver projetos na intersecção entre som, espaço e comunidade. A curadoria está a cargo de Raquel Castro, e a direção artística é de Gui Garrido, compositor e improvisador com um percurso sólido na cena experimental portuguesa.

As residências Fontes Sonoras não procuram apenas trazer artistas estrangeiros a Portugal. O objetivo é criar condições para que esses artistas trabalhem de forma aprofundada, sem pressas, num contexto rural que favorece a concentração e a experimentação. A Aldeia das Fontes, com a sua reduzida densidade populacional e envolvente natural marcante, oferece exatamente isso: tempo e espaço.

Cartaz Fontes Sonoras - Outubro.
Cartaz Fontes Sonoras – Outubro.

Há também uma dimensão de envolvimento local. As residências Fontes Sonoras pretendem abrir pontes entre a comunidade e práticas artísticas que, à partida, podem parecer distantes ou herméticas. A arte sonora tem essa capacidade de gerar surpresa e curiosidade mesmo em quem nunca teve contacto com formas experimentais de expressão.

Uma apresentação que foge ao formato tradicional

No dia 26 de outubro, Rie Nakajima e Pierre Berthet mostram publicamente o resultado da semana de trabalho no Fontes Sonoras. Mas não esperem um concerto no sentido habitual do termo. Será uma instalação performativa, o que significa que o público poderá circular, observar os objetos de perto, perceber como funcionam os mecanismos que geram som.

Esta proximidade é fundamental. Ao contrário do que acontece numa sala de espetáculos tradicional, onde existe uma separação clara entre palco e plateia, aqui todos partilham o mesmo espaço. O som não vem de uma fonte única e frontal. Vem de vários pontos, rodeia, envolve, muda conforme nos deslocamos.

Nakajima e Berthet não estarão necessariamente a “tocar” no sentido clássico. Estarão a ativar os dispositivos, a ajustar, modular, a responder ao que acontece. O acaso tem um papel central. Uma corrente de ar, uma mudança de temperatura, a presença do público – tudo isso influencia o comportamento dos objetos e, consequentemente, o som produzido.

Alargar a noção de escuta

Projetos como este lembram-nos que o som não é apenas aquilo que ouvimos de forma consciente. Há vibrações, frequências, ressonâncias que o corpo capta sem que disso nos apercebamos. A arte sonora trabalha precisamente nessa zona liminar, onde o audível e o táctil se confundem.

Nakajima e Berthet convidam-nos a desacelerar e a prestar atenção ao que normalmente passa despercebido. Não é uma proposta fácil numa época marcada pela saturação sensorial e pela velocidade. Mas é, talvez por isso mesmo, uma proposta necessária. Não percas o Fontes Sonoras, na Aldeia das Fontes, em Leiria.

Instagram: @nascentes_fontes | Facebook: @nascentesfontes

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Pedro Ribeiro
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Pedro Ribeiro

Pedro Ribeiro é o fundador do musica.com.pt. Como músico e produtor conta com mais de 25 anos de experiência no mundo da música, tendo participado em projetos como Peeeedro, Moullinex, MAU, entre outros, e tocando em venues como Lux, Maus Hábitos, Plano B, Culturgest, Glasgow School of Arts, entre muitas outras salas e locais em Portugal e no estrangeiro. Compôs música para teatro (Jorge Fraga, Graeme Pulleyn, Teatro Viriato), dança contemporânea (Romulus Neagu, Peter Michael Dietz, Patrick Murys, Teatro Viriato), TV (RTP2) e várias rádios.