Esteves Sem Metafísica, projeto de Teresa Esteves da Fonseca, nasceu daquelas coincidências que só a vida sabe escrever: onde a música irrompe dos instantes mais improváveis e se transforma numa voz própria, íntima e surpreendente.
O que começou como uma experiência casual durante o confinamento de 2020 transformou-se num álbum de estreia notável que desafia as convenções do pop contemporâneo e abraça uma abordagem genuinamente pessoal à criação musical.
Durante uma conversa reveladora para o musica.com.pt a 14 de Julho de 2025, Esteves sem Metafísica partilha a génese do seu trabalho, que nasceu de forma quase acidental durante os primeiros meses da pandemia. “Foi em 2020, foi mesmo no princípio da pandemia“, explica, descrevendo como o confinamento lhe proporcionou uma oportunidade única de exploração criativa. Trabalhando por turnos, com manhãs livres, encontrou-se com a guitarra na mão, experimentando acordes simples que dariam origem ao seu single de estreia “Sóbria“.
A canção, construída sobre apenas três acordes, emergiu de um estado mental particular que Teresa descreve como “uma espécie de adolescência tardia“. Após ter enfrentado desafios de saúde mental na adolescência e sentir que perdeu alguns anos, encontrava-se numa fase de procura de leveza, querendo “experimentar viver um bocadinho inconsequentemente“.
O refrão “eu vou ficar sóbria quando der” reflete essa tensão entre o desejo de aproveitar o momento e a consciência de que esse não era o seu estado natural. A tensão entre a necessidade de leveza e a consciência da sua natureza introspectiva, que permeia toda a canção. No fundo, funciona como uma promessa de retorno ao seu estado natural, mas não imediatamente.
Como Teresa explica, o refrão reflete essa dualidade: “deixa-me aproveitar isto, isto é um bocadinho como o Santo Agostinho dizia, acho que era nas confissões, dizia, Deus por favor dá-me a santidade, mas não agora.“

“de.bu.te”: A Evolução Orgânica de um Álbum
O que distingue a história de Esteves sem Metafísica é precisamente a natureza orgânica do seu desenvolvimento, uma abordagem à composição que revela uma naturalidade rara num primeiro álbum. E Teresa não decidiu fazer um álbum de uma só vez, foi “decidindo gravar um álbum” à medida que as circunstâncias se alinhavam. Após a gravação inicial de “Sóbria“, que “até-me soou bem“, começou a experimentar mais conscientemente, gravando inicialmente no Audacity, um programa básico que limitava as suas possibilidades criativas, mas que lhe permitiu desenvolver um “catálogo considerável de músicas“. O processo criativo revela-se fascinantemente intuitivo.

“Se me perguntares o que é que nasce primeiro, se é a melodia ou a letra, eu não faço ideia”, responde Teresa, confessando não ter uma fórmula fixa
Algumas canções nasceram primeiro da letra, outras da melodia, e em casos raros, como na “Balada da Debutante“, letra e melodia emergiram simultaneamente, num processo que descreve como “bastante orgânico“. Esta abordagem não-sistemática reflete uma filosofia mais ampla sobre a criação artística.
“Como eu nem sequer sei muito de música (…) vou inventando à medida que as coisas vão aparecendo“, explica Teresa
A liberdade criativa que caracteriza “de.bu.te” manifesta-se também na sua recusa em seguir fórmulas estabelecidas. Influenciada pela sua experiência como cantora de fado, onde “o fado é muito feeling” e os músicos “seguem-nos“, ela trouxe para as suas composições uma flexibilidade temporal que inicialmente criou desafios em estúdio. A adaptação ao metronómono foi particularmente difícil, levando mesmo à decisão de gravar uma das músicas sem seguir rigorosamente a marcação temporal, uma escolha que preserva a organicidade que tanto valoriza na música.
Esteves sem Metafísica: Da Solidão Criativa à Colaboração
O que começou como um projeto solitário rapidamente evoluiu para uma colaboração rica e multifacetada. O contacto com Sebastião Macedo (Príncipe), o produtor que viria a ser fundamental na concretização do álbum “de.bu.te” deu-se através do Instagram: uma forma muito contemporânea de iniciar uma parceria artística que se revelaria profunda e duradoura, revelando-se fundamental não apenas do ponto de vista técnico, mas também artístico. Curiosamente, ambos tinham frequentado a mesma escola, embora nunca tivessem cruzado mais do que olhares tímidos nos corredores e durante as aulas de História de Arte.
A escolha de Sebastião Macedo, conhecido pelo seu trabalho como produtor e pelos seus próprios álbuns a solo, não foi casual. Os seus trabalhos anteriores provocavam em Teresa “uma vontade criativa que eu não sei explicar“, um efeito que ela considera indicador de qualidade artística genuína.
Teresa explica a sua escolha: “os discos dele, os dois, vê-se que são da mesma pessoa, mas têm bastantes diferenças, eu ficava com essa vontade e gostei mesmo da linguagem dele, da sensibilidade, da importância que ele dá também à palavra“.
Esta afinidade estética foi crucial para o desenvolvimento do projeto e a colaboração estendeu-se por mais de dois anos de pré-produção, durante os quais 98% do tempo foi passado em conjunto, construindo cada detalhe das canções. A transição para estúdio representou uma mudança de papel para Teresa, que se sentiu “como uma project manager“.
“Eu senti que estava a ser uma project manager e que o trabalho criativo já estava feito, mas agora tínhamos de dar corpo àquilo“, explica, descrevendo um processo que envolveu gestão de pessoas, combinação de ensaios e horários, elaboração de orçamentos.
Apesar de se definir como “muito lobo solitário a trabalhar”, Teresa surpreendeu-se ao gostar “mesmo dessa parte de largar as coisas das minhas mãos e pôr nas mãos dos outros”. A experiência de estar em estúdio com músicos, alguns conhecidos, outros sugeridos por Sebastião, revelou-se extraordinária.
“Todos os músicos que participaram aqui para mim são champions league e foi maravilhoso vê-los a tocar e vê-los entusiasmados com as minhas músicas“, refere Teresa, ou Esteves sem Metafísica
Um momento particularmente marcante foi a gravação dos coros, para a qual Teresa convidou 12 amigas: “E foi uma risota. Foi uma rebaldaria. Um galinheiro do melhor. E estavam-nos só miúdas e depois o Sebastião e o Alexandre Bandola. O Alexandre estava a fazer a gravação e o Sebastião a produção. Então eles coitados estavam ali no meio do galinheiro.”
Mas nem tudo no processo foi fácil. Teresa é honesta sobre os desafios enfrentados, particularmente a questão financeira: “A coisa para mim mais difícil foi mesmo a questão financeira. E percebe-se que seja muito caro fazer um disco.” A situação melhorou com o apoio da GDA, permitindo que o projeto chegasse ao fim sem compromissos artísticos.
A Literatura como Fundação
A formação em Literatura de Teresa Esteves da Fonseca não é um detalhe biográfico menor, mas uma chave fundamental para compreender a densidade poética das suas letras. Tendo já editado um livro, ela traz para a música uma consciência literária que se manifesta na cuidadosa escolha de cada palavra e na construção de narrativas que resistem ao imediatismo. A diferença entre escrever poesia e compor letras é, para Teresa, essencialmente estrutural.
“Numa letra para uma música, tenho de ter mais cuidado com o caminho da letra… tenho menos liberdade (…) vai ter de caber numa métrica.” , afirma

Esta limitação formal, longe de ser restritiva, oferece-lhe novos desafios criativos em Esteves sem Metafísica. As letras precisam de ter “mais que um princípio, meio e conclusão” e “ser uma história um bocadinho mais bem contada“, enquanto na poesia pode permitir-se deixar “pensamentos a meio” e não ser “muito consequente com eles“.
Apesar destas diferenças formais, o impulso criativo mantém-se consistente. Tanto na poesia como nas letras, Esteves sem Metafísica procura que “o som e o sentido se encontrem”, preocupando-se sempre com a musicalidade das palavras, mesmo quando não há melodias envolvidas.
O Desafio da Categorização de Esteves sem Metafísica na Era Pós-Géneros
Uma das questões mais fascinantes que emerge da conversa com Esteves sem Metafísica prende-se com a dificuldade (comum a muitos artistas contemporâneos) de definir o seu estilo musical. A sua resposta é simultaneamente humilde e profundamente perspicaz.
“Eu acho que nós estamos a viver numa época pós-géneros.“, afirma Teresa, acrescentando ainda que “A minha geração e a geração também um bocadinho acima e sobretudo abaixo teve uma coisa que mais ninguém na história da humanidade teve que foi um acesso infindável à música. E imediato.“
Esta afirmação não nasce de pretensão artística, mas de uma análise lúcida da realidade musical contemporânea. Este acesso sem precedentes criou, segundo Teresa Esteves da Fonseca, “referências completamente esquizofrénicas” onde é possível “conhecer a fundo os Beatles… e conhecer a fundo o trabalho do Bach… e ao mesmo tempo ouvir folclore búlgaro e ao mesmo tempo ouvir o fado antigo e o fado novo“.
O resultado desta riqueza de influências em Esteves sem Metafísica é inevitavelmente uma música que desafia categorizações tradicionais. Se forçada a escolher, Teresa coloca-se “dentro daquele guarda-chuva que eu não sei muito bem o que quer dizer do pop alternativo ou do indie pop“, admitindo simultaneamente não saber “bem o que quer dizer pop“, questionando o que significa “alternativo” (alternativo ao quê?) e confessando desconhecer “exatamente o que quer dizer indie“.
Um Álbum que Exige Tempo
O álbum de estreia de Esteves sem Metafísica, “de.bu.te”, não se enquadra na lógica do consumo musical instantâneo que caracteriza a era digital.
Como Teresa reconhece, “o álbum implica, na minha opinião, mais do que uma audição. E implica alguma lentidão de quem está a ouvir, o que é um desafio, porque hoje em dia… consumimos coisas de uma forma bastante voraz e rápida.“
Esta resistência ao imediatismo em Esteves sem Metafísica é deliberada e fundamentada. O álbum ganha com o silêncio, com a lentidão e com a repetição, porque é um álbum que musicalmente tem muitas camadas, tem muitos pormenores. A questão da ordem das faixas revelou-se surpreendentemente complexa. Esteves sem Metafísica confessa que “a ordem das músicas foi um cabo dos trabalhos que eu nunca pensei que iria ser“. Após experimentarem “várias fórmulas, várias coisas diferentes e ouvir sempre os vários alinhamentos diferentes“, definiram critérios específicos: “a coisa surpresa, o ser uma coisa diferente, não ter músicas muito próximas, que fossem parecidas ou que fossem do mesmo universo e que convidasse ao ouvinte uma certa viagem“.
Teresa Esteves da Fonseca é uma defensora convicta da audição integral: “eu ouço álbuns do princípio ao fim, eu sei que nem toda a gente ouve música assim, mas eu sempre, desde muito cedo que é assim que eu ouço música e portanto também quis transmitir essa minha forma e esse meu gosto no disco.”
Esta filosofia de escuta reflete uma concepção da música como arte total, onde cada elemento contribui para uma experiência estética completa, mais uma prova da grande maturidade de Esteves sem Metafísica.
O Simbolismo do Branco e a Metáfora da Apresentação
Quando questionada sobre a cor e o cheiro que associaria ao seu álbum de estreia, Esteves sem Metafísica não hesita: “o branco, claramente“. Esta escolha não é casual, mas profundamente simbólica. A capa do álbum inspirou-se no casaco dos Beatles em “Sgt. Pepper’s”, mas em branco, uma escolha que exigiu alguma pesquisa, pois “na internet eu só encontrava das cores que eles tinham“.
O branco representa “a ideia de debutar, é uma apresentação. Eu aparecer de branco, é quase como uma tela em branco. Isto é novidade e estou aqui com o máximo de pureza que eu consigo. E pronto, ser o branco como uma cor inaugural“, afirma Teresa
Quanto ao cheiro, Teresa associa o álbum à água de colónia. Esta associação reflete a honestidade e a ausência de pretensiosidade que caracterizam todo o projeto.
“Eu sempre, desde adolescente, que uso bastante água de colónia por ser uma coisa muito barata e por eu ser muito sensível a cheiros de perfumes e que muitas vezes me dão dores de cabeça e fico enjoada.”
Esteves sem Metafísica ao vivo: Para quando?
Relativamente aos planos futuros, Teresa demonstra entusiasmo cauteloso. Tem já uma data confirmada para Esteves sem Metafísica num contexto de festival de cinema e está a trabalhar em concertos para Lisboa e Porto. Como artista independente, está a aprender os meandros da indústria musical.
“Estou um bocadinho eu a fazer por mim própria e, portanto, estou a descobrir como é que essas coisas se processam, não sei como é que tenho de começar a perguntar a muita gente como é que tu fazes para marcar concertos.“
Para os concertos ao vivo, Teresa pretende manter a integridade artística do álbum: “o que eu gostava mesmo e mesmo que implique ganhar menos dinheiro para mim, eu vou querer mesmo levar os meus músicos a palco e apresentar às pessoas aquilo que o disco é e aquilo que eu pensei para o disco.“
Esta filosofia estende-se aos seus planos criativos futuros. Esteves sem Metafísica é clara sobre não querer “trabalhar sob pressão” nem “estar com preocupações de responder a expectativas“. Em vez disso, quer “fazer as coisas da maneira que fiz com este que foi tentando buscar o máximo de verdade e de genuinidade“.
Esta posição reflete uma maturidade artística notável para um primeiro álbum: “eu como artista gosto muito mais de dar ao público aquilo que eu acho que ele merece de mim e que às vezes pode ser mais do que ele está à espera de mim e portanto se eu der ao público só aquilo que ele está à espera se calhar posso estar a tomá-los por parvos.“
O Futuro: Exploração, Experimentação e Legado
Os planos futuros de Esteves sem Metafísica revelam uma artista com sede de exploração.
“Eu tenho já há muito tempo o sonho de cantar em várias línguas eu gosto muito de línguas eu estudei literatura, estudei algumas línguas na faculdade pude estudar latim, grego antigo neste momento estou a estudar por mim própria catalão e gaélico irlandês.“, diz Teresa
Esta paixão pelas línguas reflete a sua formação literária e o desejo de expandir as possibilidades expressivas da sua música. Instrumentalmente, sente-se atraída por “instrumentos tradicionais do mundo” e tem “um fascínio muito grande por instrumentos… esquisitos.” Esta curiosidade pelos sons menos convencionais promete álbuns futuros ainda mais ricos em texturas e experiências sonoras.
“Eu tenho um fascínio muito grande por instrumentos tradicionais do mundo embora possa não parecer muito neste álbum mas eu gosto muito de músicas tradicionais que são todas diferentes umas das outras, mas têm uma ancestralidade que eu não sei bem explicar em comum.“
Quando questionada sobre como gostaria que o álbum fosse recordado daqui a 20 anos, Teresa não hesita: “como um trabalho verdadeiro eu sou (…) já há bastante tempo obcecada com a questão da verdade e da transparência.“
Esta obsessão – que se ouve e sente – com a autenticidade permeia todo o projeto, pode ser vista como o fio condutor de todo o trabalho. Num mundo saturado de produtos culturais formulaicos, Esteves sem Metafísica surge como um exercício de honestidade artística, um trabalho que recusa compromissos fáceis em favor da expressão genuína, afastando o facilitismo de etiquetas.
A sua resistência às categorizações fáceis, a profundidade poética das suas letras e a originalidade da sua abordagem sonora fazem dela uma voz necessária num tempo em que a música portuguesa precisa de artistas que não tenham medo de arriscar, de serem diferentes, de conquistarem atenção em vez de apenas exigir.
Esteves sem Metafísica e “de.bu.te”
“de.bu.te” de Esteves sem Metafísica é muito mais do que um álbum de estreia: é uma declaração de princípios artísticos, um manifesto de uma geração que cresceu com acesso ilimitado à cultura mundial e que recusa ser limitada por categorias pré-estabelecidas. Teresa Esteves da Fonseca apresenta-nos um trabalho extremamente maduro, reflexivo e corajoso, que honra tanto as influências que a moldaram quanto a sua voz única e experiências pessoais.
O álbum “de.bu.te” funciona como um espelho da experiência contemporânea: fragmentada mas coerente, individual mas universal, simples na superficie mas complexa nas camadas subjacentes da música de Esteves sem Metafísica. É um trabalho que convida à escuta atenta, que recompensa a paciência e que oferece novas descobertas a cada audição.
Num panorama musical português em constante evolução, Esteves sem Metafísica surge como um marco importante, não apenas pela qualidade do trabalho apresentado, mas pela abordagem independente e íntegra que representa. Teresa (e restante equipa) conseguiu criar um álbum que é simultaneamente produto do seu tempo e atemporal, pessoal e universal, íntimo e ambicioso.
Esteves sem Metafísica representa também um exemplo inspirador de como a criação artística pode florescer em contextos adversos. Nascido durante a pandemia, desenvolvido com recursos limitados, e concretizado através de uma rede de colaborações genuínas, o álbum prova que a autenticidade e a determinação podem sobrepor-se a quaisquer limitações externas.
“de.bu.te” de Esteves sem Metafísica é, em última análise, um álbum sobre liberdade: a liberdade de criar sem fórmulas, de explorar sem fronteiras, de expressar sem compromissos. É um trabalho que honra o passado enquanto abraça o futuro, que respeita as tradições enquanto as reinventa. É, nas palavras da própria Teresa, um trabalho verdadeiro – e essa pode ser a sua maior conquista numa época em que a verdade artística é cada vez mais preciosa. Depois de lerem isto tudo, não se esqueçam de seguir Esteves sem Metafísica no seu Instagram!
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