“Doutros Tempos” e o presente dos Dealema: entrevista com Mundo Segundo e Expeão

Entrevista a Dealema. Créditos Fotografia: Kateryna Agafonova / Musica.com.pt

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No dia 2 de Maio fizemos uma entrevista cara a cara com dois pilares dos Dealema, Mundo Segundo e Expeão, no estúdio do Segundo Piso em Vila Nova de Gaia. Numa sala cheia de histórias e vibração criativa, falámos do novo single dos Dealema, “Doutros Tempos”, do concerto dos 30 anos no Coliseu do Porto (dia 20 de Fevereiro de 2026), e daquilo que ainda os move: a urgência de dizer, de sentir, de transformar palavras em legado.

Com perto de 30 anos de carreira às costas, mas com a chama bem acesa, os Dealema mostram que o tempo não os quebrou – apenas os refinou. E como se provou nesta conversa, há muito mais do que nostalgia nas suas palavras. Há propósito. Há verdade, simbiose e comunhão – e mais importante, muita música para continuar em frente.

Podes ver a entrevista completa em baixo, ou diretamente no Youtube:

“Se forçássemos, não ia sair aquilo que está a sair agora. Precisávamos de viver outras experiências de vida para voltar na altura certa com a mesma essência.”, Expeão

Voltar para avançar: a força por trás de “Doutros Tempos”

“Doutros Tempos” não é apenas uma música, mas também um manifesto. Uma catarse, uma celebração e, nas palavras dos próprios Dealema, o resultado de uma necessidade maior. Depois de anos de silêncio enquanto coletivo, o grupo regressa com um tema que nasce de forma espontânea, mas carregada de propósito.

“A inspiração é que fez Dealema ser uma força maior. Foi o inspirar-nos uns aos outros. […] De nós para nós. E depois, se as pessoas gostarem, nós agradecemos muito.”, conforme relata Mundo Segundo

Segundo Expeão, tudo começou com uma produção de Menfis, fã de longa data de Dealema, que conseguiu capturar aquela energia “do início”, mas com uma roupagem mais moderna. Sem falarem entre si sobre o rumo do tema, cada um escreveu o seu verso e quando se juntaram, tudo encaixou. “Bateu certo”, diz com naturalidade. A química que os une continua intacta.

“E toda a gente escreveu sem falar muito daquilo que seria o tema. Porque Dealema, já temos esse hábito de fazer a escrita sem discutir muito temas. Alguns são específicos, mas nós somos conhecidos por escrever e depois quando nos juntamos tudo bate certo.” diz Expeão

A letra fala em voltar a um certo momento “para que nos possamos encontrar” e Mundo Segundo explica que esse regresso simbólico serve para nos lembrarmos do que nos trouxe até aqui. “Se um dia nos perdermos, voltamos a esse momento para perceber porquê é que estamos aqui”, afirma, sublinhando que, desde sempre, fazem música “de nós para nós”.

“Doutros Tempos” é isso mesmo: uma viagem entre o que já foi e o que está por vir. Um reencontro com a essência, com o público, com o hip hop que os moldou, e um lembrete de que ainda têm algo a dizer.

Dealema, "Doutros Tempos"
Dealema, “Doutros Tempos”

“É importante de vez em quando voltarmos a um certo sítio, seja lá no passado onde começamos, para nos lembrarmos por que razão é que estamos aqui. Então se um dia nos perdermos voltamos a esse momento para que nos possamos encontrar e perceber porquê é que estamos aqui e não nos deixarmos distrair por outras coisas que estão a acontecer com outro tipo de ruído de fundo.” afirma Mundo

Quase 30 anos de palco e o Coliseu do Porto no horizonte

Três décadas. Ditas assim, soam a peso. Mas quando se fala dos Dealema, esse tempo transforma-se em estrada, rima e resistência. No dia 20 de fevereiro de 2026, o Coliseu do Porto vai ser o palco de um momento raro na música portuguesa: a celebração dos 30 anos de uma das mais icónicas comitivas do hip hop nacional.

Apesar do tempo passado desde o último álbum coletivo lançado em 2013, o espírito está mais vivo do que nunca. “Estamos a fazer um disco”, confirma Mundo Segundo na nossa entrevista. E embora não revelem datas, deixam a promessa clara: novas músicas vão chegar antes do concerto. O segundo single “O Sangue” já tem data marcada – 10 de junho, Dia de Portugal e das Comunidades – e abordará a importância da palavra escrita.

“Temos um novo single para lançar que já aqui em antemão podemos anunciar que sairá dia 10 de junho que é o Dia de Portugal e das Comunidades porque achamos que faz sentido. É uma música que a temática aborda a escrita e a importância da mesma. Então achamos simbólico. Lá está mais uma vez, sempre à procura de algo mais que acrescente. […] Estamos neste momento a preparar-nos para gravar o que será o nosso segundo vídeo, o nosso segundo single.”

Concerto de 30 Anos de Dealema, no Coliseu do Porto
Concerto de 30 Anos de Dealema, no Coliseu do Porto

Sobre o espetáculo, a abordagem mantém-se fiel à natureza da banda. “Dealema é conhecido mesmo por não ensaiarmos e as coisas surgem de forma espontânea”, brinca Expeão, explicando que a química entre os cinco membros é tão forte que a preparação não precisa de ser formal. Mas, desta vez, há um cuidado especial. O concerto vai ter convidados escolhidos a dedo e um reforço audiovisual que promete elevar a experiência sensorial dos espectadores.

Mais do que nostalgia, este regresso dos Dealema ao Coliseu é a continuação de um caminho construído com lealdade, espontaneidade e paixão. “Nós já tocámos em todos os palcos possíveis e imaginários”, diz Mundo Segundo. “Mas o mais importante é estarmos juntos. Isso é que nos alimenta.

“Vou-te ser mesmo o máximo honesto do coração para mim é estar com eles, os cinco, estarmos os cinco juntos, e tudo o resto que vier depois disso obrigado, agradecemos muito mas eu acho que nós precisamos de estarmos uns com os outros, de nos alimentarmos desta veia poética que nós temos todos juntos, e isto faz-nos sentir melhor, faz-nos estar mentalmente mais saudáveis, mais predispostos para enfrentar a vida”, diz Mundo Segundo

Liricismo com propósito: o estado do hip hop hoje

Para Mundo Segundo e Expeão, o hip hop nunca foi apenas música, sempre foi manifesto, introspecção, filosofia. E essa exigência continua a viver no que escrevem e no que esperam do movimento. A respeito da frase “Não vou passar a tocha se é fraco o estafeta“, quando questionados se ainda não podem passar o testemunho, a resposta não deixa margem para dúvidas: ainda há muito por fazer.

O que se perdeu […] se calhar é mais do público”, diz Mundo. “Porque como o público cresceu muito, vai-se diluindo um pouco da informação daquilo que realmente é o rap e a importância poética que tem, a profundidade, o manifesto, a ideia, o conceito, a concepção, a experiência.

Para os Dealema, cada verso tem camadas, tem histórias dentro de histórias. “Eu ouço uma letra […] e percebo que não são só 16 linhas, são 16 linhas que dentro têm mais 16 linhas”, partilha. Não é apenas técnica, mas também densidade emocional e cultural, só acessível a quem escava mais fundo. “Há versos que tu podes ouvir nossos e só te vão fazer sentido quando tiveres 37.”

Dealema no MEO Sudoeste. Crédito Fotografia: deck97, Instagram Dealema (@dealema96)
Dealema no MEO Sudoeste. Crédito Fotografia: deck97, Instagram Dealema (@dealema96)

Essa consciência nasce da responsabilidade de quem sente o peso que a caneta e a palavra transportam. Expeão acrescenta que não se trata de criticar os novos estilos quando damos o exemplo do Mumble, mas sim de defender com clareza a linha que sempre seguiram – “Nós estamos a falar por todos os liricistas que continuam a carregar essa tocha.

Ainda assim, ambos se mostram inspirados com o que se faz atualmente. Mundo destaca a diversidade como algo entusiasmante: “Entusiasma-me as diferentes texturas e as diferentes cores […]. entusiasma-me termos andado, nós e outras bandas importantes que vieram antes de nós, a desbravar caminho para termos credibilidade em palcos grandes e os festivais abrirem as portas aos artistas de hip-hop e perceberem que a língua portuguesa tem um poder inigualável

Expeão reforça que há nova geração a dar cartas: “Temos tido muitos bons MC’s a surgir em todo o país […] e isso deu-me alguma vontade de voltar também pessoalmente.” Quando há qualidade, sentem-na na pele, e voltam a pegar na caneta com aquela vontade de fazer melhor – como sempre fizeram.

Dealema em estúdio: produção, inspiração e alquimia criativa

A arte dos Dealema não nasce de fórmulas mas de sentimento. E isso começa no som. “Normalmente, há pessoas que têm muitas formas diferentes de criar. Nós sempre tivemos um método: um instrumental fala para nós, e as letras vêm a seguir”, explica Mundo Segundo.

Para eles, o beat é mais do que base, é paisagem emocional, é cinema. “Tem que ser storytelling, que te faça ter esse cinema, ou então que te crie um transe, porque nós sempre nos vimos como uma tribo.” A escrita surge desse transe colectivo, em que cada MC entra no seu ritmo, mas todos formam um só corpo.

Dealema em estúdio. Crédito Fotografia: Dealema, Instagram
Dealema em estúdio. Crédito Fotografia: Dealema, Instagram

Mas não é qualquer instrumental que serve, um instrumental pode ser muito bom mas se não despertar algo dentro dos Dealema, não vai funcionar, reconhecem. Há uma estética dilemática que vive na tensão entre o clássico e o espiritual. Entre a batida “no osso” e a frequência que faz vibrar o subconsciente.

Expeão confessa que já se afastou da produção, passando a tocha ao filho e reconhecendo o poder da limitação como catalisador de criatividade. “A limitação, às vezes, é o maior suporte para a criatividade”, diz. Mundo, que começou a fazer beats em 1995 com um Casio SK5, relembra como antigamente tudo era feito com poucos segundos de sample – e essa restrição obrigava à inovação.

“Hoje em dia a produção não tem limites. É luxuosa. Se não fizeres, é porque não queres.”, Mundo Segundo

Há um respeito profundo pelo processo e pelo tempo. Não forçam. Esperam. E quando o som certo aparece, a caneta corre sozinha.

Entrevista com Dealema. Créditos Fotografia: Kateryna Agafonova / Musica.com.pt
Entrevista com Dealema. Créditos Fotografia: Kateryna Agafonova / Musica.com.pt

Dealema: O pentágono

Ao fim de quase três décadas, aquilo que mantém os Dealema unidos vai muito além da música. É irmandade. É respeito. É amor por uma linguagem comum que criaram entre eles, um código que só quem partilha o palco, o estúdio e a vida entende.

Dealema. Crédito Fotografia: Dealema, Instagram
Dealema. Crédito Fotografia: Dealema, Instagram

“Nós já sabemos tudo de todos, de cor”, diz Mundo Segundo. “Abraçamos isto de uma certa forma, e isso mostra o quanto nós gostamos das coisas uns dos outros.”

A pausa de mais de dez anos entre álbuns não foi por falta de vontade, foi por sabedoria.

“Se forçássemos, não ia sair aquilo que está a sair agora”, admite Expeão. “Precisávamos de viver outras experiências de vida para voltar na altura certa com novas experiências e a mesma estética.”

Para eles, o tempo não foi desperdício mas combustível. “Nós precisamos destes 12 anos para reunir, digamos, essa energia como se fosse uma bateria gigante, e voltarmos agora com a mesma essência do início.”

Essa essência não é só sonora. É espiritual. Está na forma como se alimentam uns aos outros criativamente. “Estamos a fazer algo que eu ouço as letras do Mundo e digo ‘ei meu Deus’… depois ouço as do Maze ou do Fuse e sinto: está na altura certa. Sem esforço. Tudo natural.”, remata Expeão.

Se há algo que aprenderam com os anos é que o motor deles nunca foi o dinheiro. “Quando fazes uma banda em que o drive principal nunca foi o económico, isso resume muita coisa”, afirma Mundo. A motivação sempre foi criar algo que fizesse os Dealema sentirem-se vivos, vibrar por dentro. E é essa chama que ainda hoje arde com força.

Confissões, risos e bastidores que ficam entre irmãos

Nem tudo o que se vive no estúdio ou nos palcos chega ao público, e ainda bem. Entre rimas partilhadas, há também versos que nunca saíram da gaveta. “Nós filtrámos muito aquilo que enviámos para o universo”, diz Mundo, entre risos. “Guardámos muitas músicas que ninguém viu, graças a Deus.”

Dealema @ 2Piso / 1996. Crédito Fotografia: Dealema, Instagram
Dealema @ 2Piso / 1996. Crédito Fotografia: Dealema, Instagram

E o mais curioso? Algumas dessas músicas esquecidas continuam a viver entre eles, como piadas internas que surgem do nada. “Às vezes até começamos com aquelas private jokes… começam a cantar um pedaço de uma música que ninguém conhece e toda a gente se começa a rir.

Houve até um convite para fazer um anúncio publicitário que acabaram por recusar. “Pensámos: não, isto não é a nossa cena. Não vamos fazer isto.” Simples assim – porque o que não bate certo com a essência, é filtrado e não passa da porta.

Entre histórias de bastidores, memórias antigas e sons não lançados, há uma consciência clara de que nem tudo precisa de ver a luz do dia. O que importa é que aquilo que escolhem partilhar seja fiel a quem eles são. E isso, garantem, nunca esteve em causa.

A urgência de estar vivo e transmitir algo mais

Esta entrevista dos Dealema é um retrato fiel de como se constrói uma carreira com raízes profundas, seguindo o instinto e o sentimento, sempre a acreditar e a trilhar caminho. Mundo Segundo e Expeão abriram-nos as portas do estúdio, da memória e da alma, com a frontalidade de quem vive e viveu cada batida com intenção.

“Tudo o que temos agora são memórias, sempre olhando em frente, verso a verso, criando o futuro passo a passo.”

Dealema, “Fado Vadio”

A frase do refrão de “Fado Vadio” dos Dealema resume bem esta jornada: um equilíbrio entre nostalgia e visão, sem nunca trair a essência e o ponto de partida, e sem nunca forçar nada.

Com novos temas a caminho, um concerto de celebração no horizonte e a chama criativa intacta, os Dealema mostram que a sua história não vive do passado, mas da urgência de continuar a dizer algo. Com verdade. Com peso. E com coração.

Não percas o concerto dos 30 anos do Dealema no Coliseu do Porto – dia 20 de Fevereiro de 2026 – e se ainda não o fazes, segue-os no Instagram!

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Pedro Ribeiro

Pedro Ribeiro

Pedro Ribeiro é o fundador do musica.com.pt. Como músico e produtor conta com mais de 25 anos de experiência no mundo da música, tendo participado em projetos como Peeeedro, Moullinex, MAU, entre outros, e tocando em venues como Lux, Maus Hábitos, Plano B, Culturgest, Glasgow School of Arts, entre muitas outras salas e locais em Portugal e no estrangeiro. Compôs música para teatro (Jorge Fraga, Graeme Pulleyn, Teatro Viriato), dança contemporânea (Romulus Neagu, Peter Michael Dietz, Patrick Murys, Teatro Viriato), TV (RTP2) e várias rádios.